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Communication Studies - Estudos em Comunicação
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Rogério Christofoletti1
Marjorie K. J. Basso2
Univali, Brasil

O preto no branco: democracia midiática no Brasil e presença de negros nas fotos dos jornais3

A segunda maior nação negra do mundo é um mosaico étnico: enquanto há estados brasileiros onde a condição negra é visível e majoritária, em outros, essa população parece inexistente e invisível. Essa divisão não se dá apenas por fatores de distribuição populacional, políticas de colonização e movimentos migratórios. Deve-se também a um conjunto difuso de comportamentos segregacionistas. é o que se convencionou chamar de um "racismo cordial", aquele que dissimula e oculta as relações étnicas, tornando cada vez mais difícil uma verdadeira democratização dos bens e das conquistas na sociedade.
Exaustivo levantamento sobre o preconceito de cor no país - feito em meados dos anos 90 - demonstrou que, embora 89% dos brasileiros afirmassem existir preconceito de cor contra negros, apenas 10% admitiam ter pouco ou muito preconceito. Mesmo assim, apenas 13% dos consultados mostraram comportamento isento de preconceito contra negros em seu cotidiano. A pesquisa definiu ainda que apenas 4% dos ouvidos enquadravam-se na categoria dos fortemente preconceituosos, mas 83% ficaram entre os de pouco ou mediano preconceito. Somadas, as duas faixas dão o contorno da expressão racista. "Os brasileiros sabem haver, negam ter, mas demonstram, em sua maioria, preconceito contra negros", resume o jornalista Fernando Rodrigues, na apresentação da pesquisa (cf. TURRA & VENTURI, 1995).

Pobreza, miséria e etnia

Passado pouco mais de uma década da divulgação da pesquisa, pouco se fez para que o quadro mudasse e para que os contingentes populacionais de negros e mestiços fossem integrados efetivamente. Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgado em Junho de 2005, revelou que o Brasil é o segundo pior país no mundo em distribuição de renda, e quem mais padece com isso é a população negra4. Um terço dos brasileiros é considerado pobre - quase 54 milhões de pessoas - e 44,1% são negros, contra 20,5% de brancos. "As maiores desigualdades entre negros e brancos estão nas regiões Sul e Sudeste, com destaque para Santa Catarina, que apresenta uma proporção duas vezes e meia maior de negros pobres que de brancos pobres", informou Márcia Costa na edição de 2 de Junho de 2005 do jornal "A Notícia", de Joinville, no sul do Brasil. Os catarinenses negros pobres estavam na casa dos 26,4% enquanto que os brancos pobres eram 10,3%.
A forma como a concentração de renda se apresenta ganha dimensões assustadoras quando os dados se contrapõem à presença dos negros na população de Santa Catarina. Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2003, havia 158074 habitantes de cor preta e 428469 pardos no estado, totalizando 586543 pessoas, 10,4% da população. Assim, uma fatia estreita da população catarinense não consegue romper o ciclo da miséria, submetendo-se a um processo histórico de exclusão social.
Esta discriminação pode ser observada não apenas na divisão das riquezas produzidas. Em outras arenas sociais, negros e pardos também ficam alijados, com participações muito reduzidas5. Nos meios de comunicação, por exemplo, são escassas suas aparições, e quando isso se dá nem sempre a imagem projetada é positiva ou dignificante.

Invisibilidade histórica

A pouca presença dos negros nos veículos de comunicação é uma situação já sedimentada na história. Na literatura, os exemplos são isolados, e no cinema, é recente o estudo dessa participação na produção cultural. Rodrigues (2001) faz uma criteriosa radiografia da história do negro no cinema norte-americano e em outros mercados consumidores. No brasileiro, por exemplo, alinhava a tipologia que os produtores nacionais construíram para os negros em seus filmes, indo dos religiosos "preto-velho" e "mãe-preta" aos cotidianos "malandros" e às "mulatas boazudas", entre outros6.
Acerca dos meios de comunicação impressos, existem poucos estudos sobre o assunto, e um dos mais célebres é o de Schwarcz (1987) que se concentra nas últimas três décadas do século XIX no Brasil. O objetivo da autora foi detectar por quais mudanças passaram a imagem dos negros veiculada por jornais paulistanos no entorno da abolição da escravatura. A pesquisadora observou a imagem dos negros na imprensa paulistana de 1870-1900 e as representações desses contingentes no contexto do final da escravatura. "Procuramos, portanto, discutir justamente os inúmeros personagens que de mera sugestão, ou imagens isoladas, vão-se transformando aos poucos em pressupostos de uma época" (248).
Em trinta anos, o negro transitou nas páginas dos jornais assumindo, inicialmente, a condição de "negro violento", "fugitivo" e "degenerado", mudando sua posição conforme a abolição foi se tornando inevitável para o modo de produção capitalista emergente. Estigmatizado, o negro é veiculado pela mídia como uma mercadoria, um objeto, algo que escapa dos proprietários. Na iminência do novo século, e na condição de liberto, a imagem do negro sofre outro processo, o apagamento.
Nos jornais paulistanos de inícios do século XX, e em especial na década de 1920, começam a tornar-se novamente presentes e inclusive dominantes antigas e já um tanto esquecidas representações que nos falavam dos até hoje tradicionais "negros de alma branca" (tão comum, como vimos, em meados do século XIX). São os negros "amigos dos brancos", "pretos fiéis e servidores", "felizes enquanto tutelados", apesar de por vezes "violentos", "instintivos" e guardando "resquícios degenerados". No interior desse movimento, aos poucos o problema racial deixa de constituir uma questão pública e veiculada explicitamente, transformando-se, ao invés disso, numa série de imagens dispersas, interiores e por isso mesmo ainda, e até hoje, muitas vezes consensualmente aceitas. (op.cit.: 255-6)
A autora nota que, cada vez mais, os grandes jornais passam a divulgar uma idéia de "harmonia racial" - o que contribuiria mais tarde para fortalecer o mito da "democracia racial" -, e o negro, por sua vez, vai desaparecendo, sumindo. Se antes a imagem da "degeneração" se dava por meio do estigma e do estereótipo, neste período, a lógica se valida pelo silenciamento, pela ocultação, pela invisibilidade do negro nos jornais, extensão da sociedade.

Racismo cordial

Sodré (1999:15) lembra os mecanismos sutis e internos da discriminação. Ela é o "não reconhecimento da exclusão do outro nos percalços da diferenciação, ou seja, do movimento complexo dentro do estatuto da identidade". Quando a verdade se mostra como identidade do mesmo, ela provoca discriminação, desconhecimento do outro, seu apagamento. No escamoteamento, na "bossa do silêncio" (como já disse Chalhoub), os discursos se sedimentam. Muniz Sodré afirma que são diversas as estratégias discursivas para se evitar a admissão de racismo no Brasil, onde "a invisibilidade social do indivíduo aumenta na razão inversa da visibilidade da sua cor".
Ou seja, como o negro é cromaticamente mais visível que o branco, torna-se socialmente invisível, é um padrão identificatório recusável. Esses antecedentes eticamente negativistas, a associação entre a pele escura e o "Mal", bloqueiam historicamente a introjeção pela consciência eurocêntrica de uma identidade plenamente "humana" do sujeito negro. A alteridade africana é conotada como fonte de debilidades físicas e morais (op.cit.: 152).
Um elemento que poderia trabalhar na contramão dessa tendência uniformizante é a mídia, na medida em que evidenciasse os diferentes estratos da diversidade étnica. Mas os meios de comunicação pouco se atrevem a isso.
A mídia é o intelectual coletivo desse poderio, que se empenha em consolidar o velho entendimento de povo como "público", sem comprometer-se com causas verdadeiramente públicas nem com a afirmação da diversidade da população brasileira. O racismo modula-se e cresce à sombra do difusionismo culturalista euroamericano e do entretenimento rebarbativo oferecido às massas pela televisão e outros ramos industriais do espetáculo (idem: 244).
A pesquisa empreendida por Schwarcz traz à luz as representações dos negros nos jornais num determinado período. Mas a observação da imagem nos jornais não sinaliza apenas aspectos simbólicos, podendo apontar também para a sua figuração, a sua visibilidade numa vitrine midiática. Assim, a fotografia é uma dimensão da presença social das pessoas num espectro maior. O que equivale dizer - numa lógica linear e rasteira - que sai no jornal quem é importante jornalisticamente, quem é notícia ou quem faz parte de fatos que redundarão nela.
Neste sentido, mapeando-se a presença dos negros nas fotografias pode-se medir indiretamente sua visibilidade na sociedade7. Aliás, é aí que reside uma fundamental discussão. O levantamento realizado pelo Datafolha e pela Folha de S.Paulo em 1995 identificou uma prática social amplamente disseminada no país, batizada de "racismo cordial". A expressão se apóia no conceito de "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda (1994:106-7), para quem o brasileiro tem no seu caráter uma aparente polidez e generosidade, mas que na verdade funciona como uma "organização de defesa ante a sociedade", um disfarce para manter suas convicções e posições. Assim, a pesquisa do Datafolha trouxe à tona que a "imensa maioria dos brasileiros demonstrou ter ou estar inclinada a ter atitudes preconceituosas em relação a pessoas negras, mas quis minimizá-las. Uma demonstração de cordialidade, talvez, para não ofender mais aquele que se discrimina" (TURRA & VENTURI, 1995: 12).
Este "racismo cordial" contribui para uma negação do preconceito racial, bem como outra estratégia bastante espalhada na sociedade, como o apagamento dos negros dos meios de comunicação. A invisibilidade. Em Santa Catarina, análises semelhantes já foram produzidas. Leite (1996), por exemplo, desconstrói mitos que justificariam a pouca presença dos negros na sociedade catarinense, como a não-vigência de um sistema escravista mais forte na região e a existência de relações mais igualitárias e democráticas entre brancos e negros. O raciocínio denuncia um processo de embranquecimento em toda a região Sul do Brasil.

Embranquecimento da população

Pedro et all (1996:233) lembram, por sua vez, que além da historiografia, "os meios de comunicação de massa vêm construindo uma imagem de loira catarina, um pedaço da Europa no Sul do Brasil". Essa atuação, voluntária ou não, provoca mais uma forma de discriminação, apontam os autores: a negação da existência e da memória.
Ainda nos estudos sobre a presença negra em Santa Catarina empreendidos nos anos 90, o Núcleo de Estudos Negros (NEN) chegou a editar um Dossiê Contra a Violência Racial no estado, documento que denuncia, por exemplo, que o preconceito de cor no Brasil é "camuflado".
Em Santa Catarina uma outra fantasia vem contribuir para a discriminação: a invisibilidade oficial da população negra. Acredita-se que estejamos vivendo no Estado "mais branco" do Brasil. Devido à grande quantidade de descendentes dos imigrantes europeus instalados nesta região anulou-se oficialmente a idéia da presença de negros em Santa Catarina (NEN, s/d: p.1)
Segundo o dossiê, a prática da discriminação racial em terras catarinense não difere muito da que acontece no resto do país. Os expedientes são sutis, dissimulados, escamoteados.
Ao realizar este dossiê descobrimos, enfim, que jamais encontraríamos toda a extensão da discriminação social em dados estatísticos oficiais. Exatamente porque racismo, ainda que evidente, não é oficial. Mesmo que suas provas andem circulando pelas cidades catarinenses, são testemunhos emudecidos [...] A posição oficial, ao longo dos anos, tem sido de que se existe racismo no Brasil ele é no máximo cordial. Pois esta "cordialidade" não é mais do que uma bela maneira de realizar o crime e sair impune. Discrimina-se discreta e silenciosamente, assim, não há provas. E sem provas, não há punição. (op.cit.: 3)
Circula livremente no senso comum a idéia de que os negros frequentam as páginas dos jornais quase sempre na editoria de Polícia, onde são relatados crimes e tragédias pessoais. Para além do imaginário coletivo, é preciso verificar se isso realmente ocorre e em que dimensão nos jornais catarinenses.

Preocupações metodológicas

Pesquisa de Golzio et all (2006) mostrou que negros e afro-descen-dentes geralmente são caracterizados na mídia em profissões que não exigem ou pouco exigem escolaridade formal. O levantamento teve como base 58 reportagens de capa da revista Veja no período de 1968 a 2003. Usando a técnica da Análise de Conteúdo, o estudo se deteve sobre reportagens em negros e afro-descendentes apareciam como coadjuvantes ou protagonistas. Entre os resultados, percebeu-se que em 50,4% dos casos, esses personagens estavam relacionados aos esportes (29,9%) e à cultura (20,5%), reforçando os estereótipos de que negros e negras só se destacam como esportivos ou músicos.
A imagem que se projeta a partir desta constância é a de que os afro-descendentes tenham mais pendor ou aptidão para estas duas áreas de atuação profissional. Outro aspecto que comprova tal fato advém do pós-escravismo, visto que, depois da Abolição, os negros foram entregues à condição de mão-de-obra assalariada degradante, sistema não muito diferente da sociedade colonial. Nesse novo processo, o modelo escravista continuou de maneira implícita, estereotipada e discriminatória.
Interessante perceber que, na mesma pesquisa, foram contabilizadas 73 aparições em fotografias de personagens de características brancas contra 65 de afro-descendentes. Um evidente processo de branqueamento no período que compreendeu a primeira edição de Veja até a última do ano em que a Editora Abril comemorava seus 30 anos de existência.
Em outro estudo, Ferreira Vaz e Brandão Tavares (2004) mapearam as aparições de negros e afro-descendentes em três grandes diários do sudeste brasileiro: O Globo, Folha de S.Paulo e Estado de Minas. Esses contigentes apareceram menos nas páginas consideradas nobres do jornalismo impresso - nas editorias de Política e de Economia - se comparadas às de segurança pública e violência urbana. Nessas seções, negros e afro-descendentes são retratados tanto como causadores quanto como vítimas de crimes. Para os autores, é por meio dessas ocorrências que a mídia impressa reforça estereótipos contribuindo para a "manutenção de uma imagem negativa destes indivíduos".
As duas pesquisas sinalizam o que se pode encontrar nos jornais. Mas o que esperar da imprensa de um estado que é considerado um dos mais "brancos" do país? O que se pode encontrar nas páginas dos jornais de um estado que insiste em apagar mais de meio milhão de pessoas? Negros e mestiços aparecem nas fotografias dos jornais? Com que frequência? Essas aparições são proporcionais ou próximas às participações dessas etnias na população catarinense? Mestiços e negros figuram em fotos de que quais editorias nos jornais? E essas presenças podem ser analisadas de que maneira?
A visibilidade e a invisibilidade desses catarinenses na mídia catarinense motivaram o monitoramento dos três principais jornais do estado: Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina. A escolha desses títulos se deu com base em três critérios: são os de maior tiragem (juntos, alcançam diariamente mais de 100 mil exemplares); estão sediados nas principais cidades do estado (Florianópolis, Joinville e Blumenau, respectivamente) e, somados, cobrem todos os 293 municípios do estado.
O período de monitoramento dos jornais abrangeu os meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2005, mais Janeiro, Fevereiro, Março, Abril e parte de Maio de 2006, contabilizando 286 dias. Optou-se pelo 13 de Maio como a data de fechamento da observação por ser um marco simbólico presente no imaginário de brancos e não-brancos, evocativo do dia da assinatura da Lei áurea, a que erradicou formalmente a escravidão no Brasil em 1888.
Foram levadas em conta 777 edições, sendo 266 do Diário Catarinense, 267 de A Notícia e 244 do Jornal de Santa Catarina. Como a pesquisa se debruçou sobre a presença de negros e mestiços nas fotografias veiculadas nos jornais, inicialmente, foi necessário contabilizar as fotos publicadas e identificar nelas a presença/figuração desses personagens.
Embora Valente (1991: 45) afirme que ser negro hoje no Brasil é uma questão política, neste estudo, foram adotados critérios bem definidos para se considerar o indivíduo negro ou mestiço. A identificação se deu com base nas chamadas características fenotípicas, isto é, na aparência dos sujeitos, e não em quesitos genéticos. Assim, indivíduos com cabelos crespos, lábios grossos, nariz aberto e cor da pele escura foram considerados negros/mestiços, e constaram das estatísticas referentes a esta etnia. Apesar de existir um certo grau de subjetividade nessa análise, é possível perceber com facilidade quando um sujeito é do tipo caucasiano ou não. Negros, mestiços e pardos foram tratados, sem distinção, como negros na pesquisa.
A contagem da presença dos negros nas fotografias se deu acompanhada da catalogação dessas figurações de acordo com as seções dos jornais e as circunstâncias em que se deram. Com isso, foi possível apontar se os negros/mestiços aparecem mais ou menos nos jornais em comparação à sua presença na população catarinense; onde eles mais são retratados nos diários; se em situações que podem ser consideradas positivas ou desabonadoras.

Negros nos jornais catarinenses

O mapeamento da presença de negros e mestiços nas fotografias dos principais jornais catarinenses permitiu perceber alguns dos mecanismos mais sutis de manutenção de uma ordem segregacionista. Assim, não se pode dizer que os diários locais ignorem a população afro-descendente, já que ela é retratada com alguma frequência no noticiário. Entretanto, ao se estabelecer a comparação entre as fotos em que esses contingentes aparecem e o total das publicadas, chega-se a uma participação menor que a registrada no censo populacional. Isto é, de acordo com o IBGE, pardos e negros representavam 10,4% dos habitantes catarinenses, o que não chegava a 600 mil pessoas.
O mapeamento da presença negra nos jornais mostrou que, nas 777 edições analisadas, foram publicadas 53634 fotos, das quais apenas 4995 continham personagens com características fenotípicas de negros e mestiços. Nos três jornais selecionados - A Notícia, Diário Catarinense e Jornal de Santa Catarina -, registrou-se a presença negra em apenas 9,31% das fotos veiculadas. Esse percentual é 11% menor que o considerado pelo IBGE.
Em todos os jornais, os negros aparecem menos do que a percentagem que ocupam na população. O que mais se aproximou dessa equivalência foi A Notícia (10,25%), seguido do Diário Catarinense (9,22%) e do Jornal de Santa Catarina (8,36%). Pode-se explicar a última colocação do jornal de Blumenau pela sua área de cobertura e influência. O Vale do Itajaí é uma região do estado altamente marcada pela colonização dos povos europeus, em especial os germânicos. A região concentra municípios onde ainda se cultivam língua, gastronomia e demais hábitos culturais alemães. Em Pomerode, Indaial e Blumenau, por exemplo, há maciça predominância de camadas caucasianas, marcadamente loiras, na população. Como a presença de negros e mestiços é pequena nas mesmas localidades, o jornal - que se dedica prioritariamente a cobrir essa região - acaba enfocando pouco esses personagens.
O mesmo se poderia dizer da região de Joinville, sede do jornal A Notícia, onde também se deu um importante foco da colonização alemã? Não. Por várias razões. A cidade recebeu imigrantes, vindos não apenas da Alemanha, mas de outros países como Itália, França e Rússia. O município se converteu no maior do estado e atraiu migrantes de diversos cantos de Santa Catarina e de outros estados, criando um ambiente mais plural. O índice de presença de negros e mestiços nas fotografias de A Notícia, o maior entre os jornais analisados, acaba reforçando essa tese.
Período
Jornal
Total de Fotos
Com presença
% de presença
Agosto/2005 a 13/Maio/2006Diário Catarinense 2159319919,22
Agosto/2005 a 13/Maio/2006Jornal de Santa Catarina 1496212528,36
Agosto/2005 a 13/Maio/2006A Notícia 17079175210,25
Agosto/2005 a 13/Maio/2006Os três analisados 5363449959,31
Table 1: Visibilidade dos negros em nos jornais em todo o períodoFonte: Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina e A Notícia, de 01/08/2005 a 13/05/2006.
Observado o período de análise - Agosto de 2005 a Maio de 2006 -, registrou-se uma certa regularidade das ocorrências das fotos de negros e de afro-descendentes. Essas presenças mantiveram um certo padrão nos jornais que variou entre as casas dos 8% e 9%. Atípicos foram os meses de Dezembro de 2005, com índice de 7,18% de ocorrências, e Fevereiro de 2006, que registrou um salto, alcançando 11%. Não se detectou nenhum motivo aparente para a ligeira queda em Dezembro, mas quanto a Fevereiro, a hipótese para o crescimento pode ser atribuída ao Carnaval8, que se deu na última semana, podendo ser refletido inclusive em Março. Em A Notícia, o índice de ocorrência chegou a 14,25%, mas no Diário Catarinense caiu em relação a Janeiro (9,67% e 10,32%, respectivamente) e no Jornal de Santa Catarina foi o segundo maior do período (9,52%), perdendo apenas para Março (9,56%).
Período
Total de Fotos
Com presença
% de presença
Agosto/200553934818,91
Setembro/200560085479,10
Outubro/200562241518,27
Novembro/200558135439,34
Dezembro/200555423987,18
Janeiro/200653945389,97
Fevereiro/2006589764911
Março/200654005349,88
Abril/200654715459,96
1 a 13 Maio/200624922469,87
Table 2: Visibilidade dos negros em todos os jornais por mêsFonte: Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina e A Notícia, de 01/08/2005 a 13/05/2006.
Na análise das ocorrências divididas por editoria, o levantamento apontou um dado já esperado (a predominância de fotos de negros e afro-descendentes nas páginas dedicadas a Esportes e à Cultura e Variedades) e contrariou outro (o de que negros e mestiços povoam as seções de Polícia). Entre as hipóteses que sustentavam essa pesquisa estava a de que os jornais reforçam dois estereótipos: personagens negros e afro-descendentes destacam-se como esportistas (geralmente, futebolistas) e músicos (cantores e instrumentistas populares) e estão envolvidos em questões de segurança pública, seja como autores de crimes ou suas vítimas. Os dados do mapeamento da presença negra nos jornais catarinenses confirmaram a primeira hipótese, mas negaram a segunda.
Das 4995 fotos em que figuram, 3472 foram publicadas nas editorias de Esportes e Cultura/Variedades, percentual de 69,50%. As ocorrências na seção de Polícia não chegaram a 2%, e somadas às da editoria de Geral, alcançaram 8,78%. Os registros veiculados em páginas consideradas nobres (Política, Economia, Coluna Social, Mundo e Opinião), juntos, alcançaram 6,18%, o que significa dizer menos de um décimo do total de fotos que retratavam negros e mestiços. Esse dado contrasta com as aparições em outras seções que também denotam alta relevância jornalística. Assim, a pesquisa contabilizou 534 ocorrências nas primeiras páginas dos jornais, em suas contracapas (no caso de Diário Catarinense e Jornal de Santa Catarina que delas dispõem) e em seções dedicadas a Destaques e Reportagens Especiais. Essas ocorrências alcançam 10,69% do total de presenças.
A disposição dos dados colhidos na pesquisa em editorias permite perceber como a presença negra se dá nos jornais, e em que circunstâncias esses contingentes frequentam o espaço midiático da grande imprensa catarinense. O monitoramento de quase seis meses em três jornais distintos possibilita afirmar que negros e mestiços aparecem em todas as seções dos diários, mas acentuadamente em duas delas. Essa tendência já havia sido apontada por Golzio et all (2006) em outra mídia - a revista Veja - e em outro período e geografia - de 1968 a 2003 e em caráter nacional. Entretanto, o levantamento da presença negra nas fotos dos jornais catarinenses salientou cores mais fortes nessas ocorrências. Foram quase 70% das ocorrências contra 50,4% do estudo anterior. Condições geográficas e características do meio jornal - como a frequência e maior dedicação à cobertura dos esportes - podem auxiliar a compreender melhor essa disparidade.
A pouca visibilidade de negros e mestiços em seções de Política e Economia, 1,50% e 1,54% respectivamente, provocam entendimentos de que esses contingentes pouco participam dos universos decisórios. A invisibilidade de negros e afro-descendentes leva a crer que não são fontes no meio político e que sequer fazem parte da massa produtiva nos meios e sistemas econômicos. Esse dado envida a pesquisar numa próxima oportunidade, por exemplo, as fontes consultadas nessas editorias e seus critérios de seleção de noticiabilidade. A intensa presença de negros e mestiços nas seções de Cultura/Variedades e Esportes contrasta com suas figurações na editorias de Política e Economia, permitindo compreensões que reforçam os estereótipos de que esses contingentes desempenham funções na sociedade que dependem mais dos talentos individuais do que propriamente de habilidades mais elaboradas de raciocínio e de instrução formal.
Editoria
DC
AN
JSC
SOMADOS
% das aparições
Capa53934814814818,91
Geral60084814815479,10
Política62244814811518,27
Mundo58134814815439,34
Social55424814813987,18
Opinião53944814815389,97
Destaque/Especial589748148164911
Contracapa54004814815349,88
Outras seções54714814815459,96
Table 3: Visibilidade dos negros em todos os jornais, por editoria em todo o períodoFonte: Diário Catarinense, Jornal de Santa Catarina e A Notícia, de 01/08/2005 a 13/05/2006.

O preto no branco

O acompanhamento sistemático dos jornais e a identificação de negros e afro-descendentes nas fotografias publicadas permite afirmar categoricamente que a imprensa catarinense pouco contribui para uma democracia midiática. Entende-se por democracia midiática um ambiente na esfera da opinião pública que contemple a diversidade étnica, religiosa, ideológica e cultural; um ambiente que favoreça o contraditório, que estimule a pluralidade e que não fabrique o consenso a todo custo.
O monitoramento de quase seis meses mostrou que os jornais locais mostram menos os negros e mestiços. Menos em comparação á fatia populacional que ocupam. Com isso, os diários contribuem para seu apagamento, para sua invisibilidade na medida em que promovem um branqueamento dos personagens das fotos. Outra atuação que vai na contramão de uma democracia midiática é o reforço aos estereótipos, atitude conservadora, mantenedora de uma ordem e nada questionadora da sua efetiva vigência.
Os jornais fazem isso, conscientemente? De propósito? Não é possível afirmar isso, já que os dados da pesquisa não dão conta das motivações e critérios de seleção dos fotojornalistas e editores de imagem dos jornais. No entanto, a mídia impressa funciona também como uma arena pública onde desfilam os personagens da sociedade; uma vitrine por meio da qual se exibem e são vistos tais personagens. Desta forma, ao estampar em suas fotos uma quantidade menor do que a proporção que os negros ocupam na população catarinense e ao relegar a esses contingentes certos guetos jornalísticos, a imprensa contribui para intensificar a discriminação e o racismo, na medida em que estreita o espaço de participação desses contingentes.

Referências Bibliográficas

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Footnotes:

1Rogério Christofoletti, Univali, Brasil E-mail: rogerio.christofoletti@uol.com.br
2Marjorie K. J. Basso, Univali E-mail: marjoriebasso@hotmail.com
3Pesquisa financiada com recursos do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (Probic) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), Santa Catarina, Brasil.
4Em Fevereiro de 2002, edição da revista Carta Capital já dava conta, inclusive em matéria de capa, que a desigualdade entre brancos e negros estava aumentando e que a adoção de ações afirmativas efetivas era urgente. Números considerados "vergonhosos" apontavam que o Brasil branco era 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro - conforme o IPEA - e que apenas 15,7% dos estudantes que se formam em universidades no país são negros (conforme o Ministério da Educação), entre outros dados.
5A história da exclusão racial no Brasil tem suas artimanhas. Chalhoub (2006) denuncia que políticas racistas disfarçadas ajudaram a barrar a ascensão social dos negros. Segundo o autor, sem fazer estardalhaço, as elites brancas criaram mecanismos que minavam a participação dos negros na vida social do final do século XIX. A Constituição de 1824 impedia que os negros libertos votassem, fossem eleitos e assumissem cargos públicos para os quais se exigiam as qualificações de eleitor. Mesmo após a Lei do Ventre Livre (1871), o Parlamento deu um jeito de dificultar a participação dos filhos de escravos que nasciam livres: reformaram a legislação eleitoral, instituindo critérios rigorosos de alfabetização. Com isso, os negros permaneciam longe da política e, portanto, das decisões. "Aqui, o racismo tem a bossa do silêncio, vive de interditar o seu próprio nome" (op.cit.).
6Na internet, um site norte-americano se encarrega de reunir as referências cinematográficas que têm entre os seus realizadores atores e atrizes, diretores e técnicos negros. Trata-se do BlackFlix: http://www.blackflix.com
7Por falar nessa visibilidade, não se pode ignorar também a escassez de publicações especializadas e dirigidas ao público leitor negro. O exemplo mais notório é a revista Ebony, editada nos Estados Unidos há sessenta anos, e que tem no mercado brasileiro uma assemelhada, a Raça Brasil, lançada em 1996.
8Tradicionalmente uma festa popular com raízes e massiva participação negras, o Carnaval é uma época em que ficam em evidência personagens afro-descendentes, muito embora nas últimas duas décadas celebridades não-negras têm enxergado a data como uma vitrine para alta exposição midiática.