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Sobre clássicos, tradição e o campo comunicacional

Rafiza Varão1

Falar sobre clássicos e tradição, nos vários sentidos que as diferentes formas de conhecimento nos oferecem, é nos colocarmos, imediatamente, numa frente de batalha entre um passado que se mostra pela fresta de uma porta semicerrada, de dimensões cartapácias, e a contemporaneidade que recolhe, pelas frestas da mesma porta que nos liga ao que já findou, peças antigas para compor o seu próprio quebra-cabeças. Nas ciências, em especial naquelas que chamamos de Sociais, não é diferente. No confronto com o passado, muitas vezes é necessário redefinir não só a importância dos clássicos, mas demarcar a extensão e os limites da lista que contempla aqueles que devem ser considerados os autores capitais de um determinado campo, num movimento constante de reconstrução.
Contudo, a intensidade do retorno aos clássicos não é uniforme. Por vezes, estes adquirem uma centralidade imperiosa. Em outros momentos, embora presentes, permanecem em estado periférico, passando ao largo do centro das discussões. É exemplar do primeiro caso, a Sociologia - não por eventualidade a mais prolífica área das Ciências Sociais quanto a problematização da natureza dos clássicos2; do segundo, a Comunicação.
Na Sociologia, Durkheim, Marx e Weber são pontos de partida para qualquer exercício que busque compreender a sociedade, e a certeza de que o conhecimento novo não pode existir sem o conhecimento antigo os coloca em posição privilegiada, como fundadores do discurso de toda uma disciplina. Parafraseando a metáfora religiosa, ninguém vai a Sociologia senão por eles. Como clássicos, sua função "não é ser assimilado, no sentido de ser superado, e datado como nas ciências naturais, mas ser elaborado, adaptado, colocado em um novo idioma, aplicado a uma nova situação" (SHILS, 1980, p. 247)3. Durkheim, Marx e Weber, portanto, não estão adormecidos no passado, como pioneiros ingênuos, nem seus discursos se esgotaram em si mesmos e em suas épocas. Antes, na verdade, suas contribuições ao campo da Sociologia são continuamente examinadas, possibilitando não apenas um conhecimento mais profundo de seu objeto, mas da própria Sociologia, independente de qualquer particularidade dos cientistas. Eles formam a tradição, a herança do campo, e como tal são revisitados geração após geração.
Na Comunicação, por outro lado, nos parece que a tendência é diametralmente oposta. Um exemplo é a quadríade elencada por Berelson em The state of communication research (1959), formada por Harold Lasswell, Paul Lazarsfeld, Carl Hovland e Kurt Lewin, que acaba representando o papel de clássicos na tradição estadunidense de pesquisa4. Na verdade, esses mesmos autores encontram-se dispersos, perdidos em discursos que privilegiam não a acumulação, o diálogo com a tradição, mas relegam-nos a apresentações cronológicas do desenvolvimento do saber comunicacional. A tradição, assim, não passa muito além de um conhecimento estanque, a ser transferido como uma coleção de alfarrábios. A exceção à regra, talvez, seja Lazarsfeld, cujo prestígio ainda se faz sentir hoje. Já as referências a Lasswell e Kurt Lewin são costumeiras em obras panorâmicas, mas escassas quando se trata de análises mais profundas. Para se ter uma idéia, num universo de 14 importantes revistas da área5 , entre os anos de 1958 e 2008, apenas dois artigos são voltados para repensar a obra lasswelliana, tendo-a como seu mote central. Lewin é ainda menos lembrado: não há, também nesse universo, nenhum artigo que resgate suas contribuições ao campo da Comunicação. Mais que os problemas descritos, não se sabe, sequer, se podemos mesmo apontar tais autores como clássicos da Comunicação, o que não ocorre com Durkheim, Marx e Weber, nem mesmo com autores posteriormente incluídos no rol da tradição sociológica, como Simmel, que se via, antes de tudo como um filósofo.
Apontar as diferenças entre Sociologia e Comunicação no tratamento dos clássicos, entrementes, não significa, em nenhuma instância, que as duas áreas representem casos isolados. A controvérsia sobre o recurso aos clássicos nas ciências se estende há pelo menos, alguns séculos. Na obra On Social Structure and Science (1997), Merton observa que Galileu já afirmava que "[...] um homem jamais se tornará um filósofo se permanecer se preocupando com os escritos de outro homem" (p. 28)6, e Weber, mais de duzentos anos após a morte de Galileu, sugeria que "[...] cada um de nós sabe que o que realizou será considerado antiquado em dez, vinte, cinqüenta anos" (p. 24)7. Merton (1997), dessa maneira, questiona, até certa medida, o aforismo newtoniano que prega a importância dos precursores da ciência: "Se eu vi mais longe, foi por estar de pé sobre 8
9 nanos, gigantium humeris insidentes, ut possimus plura eis et remotiora videre. Como anões nos ombros de gigantes, nós podemos ver mais do que eles.

Da natureza dos clássicos

O termo clássico é longevo e, embora seus sentidos hoje sejam aplicados de maneira diversa, todos carregam a marca de sua origem, a velha região da Ática, na Grécia. Foi ali que o gramático latino Aulus Gellius, no século II, o utilizou pela primeira vez, para designar os escritos dos expoentes da primeira das cinco classes romanas, os classici. Gellius recolheu, a partir dessa visão, centenas de histórias, que rechearam 20 livros, sob o nome de Noites Áticas, e decretou: "[...] classicus adsiduusque aliquis scriptor, non proletarius" ou "o clássico é um escritor de distinção, não um proletário"10 (GELLIUS, 19.8.15). A definição restringe os clássicos a representantes de uma classe especial, a mais alta, idéia que permanece hoje num sentido figurado. Além disso, identifica os clássicos com a tradição escrita, o que é válido hoje somente até certo ponto, pois as artes, de uma maneira geral, passaram a ter seus representantes também da "classe mais alta". Essa idéia de um grupo privilegiado de autores chega mais tarde à ciência, conforme veremos adiante. Gellius, contudo, estava falando de literatura.
Segundo Saint-Beauve (2006)11, um dos pioneiros na busca da genealogia do termo clássico, a primeira referência oficial à palavra na Academia foi no também primeiro Dicionário da Academia, de 1764, publicado em meio aos avanços da Revolução Científica dos séculos XVII e XVIII, no qual se afirmava ser o detentor do título "um escritor antigo de prestígio, aquele que é uma autoridade no que concerne ao seu tema de trabalho" (p. 4). Embora essa não seja uma definição muito clara, aparecem nela duas características importantes, ausentes em Aullus Gellius: a inscrição dos clássicos no passado e a influição pela autoridade. Mesmo assim, os ecos de Gellius ainda se fazem ouvir. Não há muita distinção entre um autor literário e um autor científico. O lugar do passado na Ciência ainda não estava bem assentado.
Prima facie, a discussão sobre as relações entre o conhecimento científico novo e o conhecimento científico antigo só ganha força, realmente, ao final da época de ouro da Ciência, no século XIX, em que o questionamento da natureza de cada ciência e, por conseguinte, de seus textos estruturantes, começa a fazer parte dos debates epistemológicos, com, é claro, diferenças de campo a campo.
Nas Ciências Naturais, que presenciaram mais de perto a luta do Iluminismo contra as "trevas da ignorância", e nas quais o peso das descobertas se coloca insistentemente, houve um movimento até meados do século XVIII no qual "a ciência parecia ser hostil à tradição; a tradição foi entendida como prejudicial à ciência" (SHILS, 2006, p. 102)12 ,numa rejeição ao conhecimento forjado no passado13 , que estaria, do mesmo modo, envolto em ignorância. Logo, entretanto, não se tardou a perceber que tal postura gerava, ela sim, trevas sobre o próprio conhecimento científico e Newton, talvez, tenha sido um dos primeiros a percebê-lo. Todavia, a relação estabelecida hoje entre o passado e o contemporâneo nas Ciências Naturais ocupa um lugar um pouco diferente daquele das Ciências Sociais. Para as Ciências Naturais, a continuidade já está internalizada em sua constituição. As Ciências Naturais possuem aquilo que Kuhn chama de "exemplares": "exemplos concretos de trabalhos bem-sucedidos" (ALEXANDER, 1993, p. 19)14 . Inequivocamente, os "exemplares" de Kuhn correspondem aos "clássicos". Porém, o processo de acumulação nas Ciências Naturais faz com que o regresso a eles não seja tão necessário, pois os "exemplares" restam implícitos nas teorias contemporâneas.
Nas Ciências Sociais, cuja história é mais recente e cujas tradições vão ser construídas, de fato, durante o século XX, a direção tomada é díspar: ora tenta se equiparar às Ciências Naturais, ignorando suas características distintas; ora reconhece o retorno aos clássicos como um elemento importante e decisivo na formação de seus discursos.
Avaliemos a primeira direção, tentar equiparar-se às Ciências Naturais. O que se pode entender por isso? Nessa visão, defendida em grande parte por Merton em On the shoulders of giants, as Ciências Sociais devem evitar o retorno constante ao passado e empenhar-se em tornar a acumulação tão intensa que a tradição permaneça implícita e não mais sirva como mote de questionamento. Nesse caso, logo que a acumulação ocorra, não haveria mais necessidade de se voltar aos clássicos, como nas Ciências Naturais. A intenção de Merton não deixa de ser boa. O que ele está dizendo, basicamente, é que, a longo prazo, assim como as Naturais, as Ciências Sociais devem voltar pouca atenção aos clássicos, e que, a curto prazo, devemos ser possuídos por uma enorme cautela em sua utilização. Para ele, o estudo dos clássicos deve ser relegado aos historiadores do campo. Contudo, tal assertiva torna invisíveis as diferenças entre as Ciências Naturais e as Ciências Sociais e a percepção de que o longo prazo ainda é, ao menos no atual estágio do desenvolvimento das Ciências Sociais, realmente, longo.
Já dissemos que a acumulação nas Ciências Naturais se organizou de forma distinta que nas Ciências Sociais. O discurso do passado, nas Ciências Naturais, se aloca virtualmente, sem a necessidade de se dizer nada. Segundo Jeffrey Alexander (1993), isso se dá, prioritariamente, pela maior atenção dada, pelas Ciências Naturais, à dimensão empírica, e não simbólica, de seus dados. As dimensões não-empíricas estão, quase que completamente, camufladas. Nas Ciências Sociais, pelo contrário, é a dimensão simbólica dos dados empíricos o que realmente conta.
O privilégio dado à dimensão empírica faz com que o background no qual os neófitos das Ciências Naturais são inseridos, apareçam muito mais como modelos e técnicas confiáveis para explicar o mundo. Como tais, seus clássicos são assimilados exatamente da forma como Kuhn sugeriu. Mais que isso, a dimensão empírica resulta em um número muito menor de discordâncias entre os pares que nas Ciências Sociais, onde a contenda sobre qualquer assunto é endêmica. Pautadas sobretudo no discurso, as Ciências Sociais "enfocam os processos de raciocínio, mais do que os resultados da experiência imediata" (ALEXANDER, 1993, p. 22)15. Dessa maneira, o que resta implícito nas Ciências Naturais se coloca no centro do palco das Ciências Sociais.
Nelas, com a dimensão simbólica tendo primazia, de outro modo, o backgroundao qual os neófitos devem ser apresentados surge como um grande mural, com algumas partes descascadas, que devem ser completadas pelos novatos. Como completá-lo sem ter, sequer, a noção do que estava no original? Não se pode, simplesmente, pintar um muro novo, pois se corre o risco de já não se estar mais falando da mesma coisa, ou de, inadvertidamente, reinventar a roda.
Diante deste cenário, o retorno aos clássicos nos parece mais adequado. São os clássicos, então, que nos dão um sentido de integração e continuidade em meio à avalanche de conhecimento e de discursos produzidos na contemporaneidade. O clássico reduz a complexidade. O que é, então, um clássico para as Ciências Sociais?
Clássicos são trabalhos pioneiros da exploração humana a quem é dado um estatuto privilegiado em relação às explorações contemporâneas num mesmo campo. O conceito de estatuto privilegiado significa que profissionais contemporâneos da disciplina em questão acreditam que podem aprender tanto sobre como o seu domínio através da compreensão deste trabalho pioneiro como podem a partir dos seus próprios contemporâneos [...] como clássico, tal trabalho estabelece os critérios fundamentais de um campo particular (Idem, p. 11-12)16
Nesse sentido, o termo clássico privilegia o conhecimento que se encontra na origem de um campo. Como conseqüência, há muitas vezes, coincidência entre clássicos e fundadores (como no caso de Durkheim, Marx e Weber). O clássico, podendo ensinar tanto ou mais que os contemporâneos, é, assim, uma referência, um ponto de passagem do qual não se pode (ou não se deve) desviar. Ainda de acordo coma definição de Alexander, os clássicos ocupam o lugar de mestres, e toda a definição dos critérios particulares e inerentes a um campo passa por eles.
Os clássicos, portanto, os grandes mestres do passado, representam a porta de entrada na tradição (ou tradições) de um campo, peças importantes para compor o quebra-cabeças contemporâneo de um determinado saber.

Do universo da tradição

Num mundo onde tudo o que é sólido se desmancha no ar, o termo tradição se coloca como contrapeso à ebulição das novidades. No entanto, de uma forma geral, tradição não é uma palavra que goze de muito prestígio num orbe que eleva o novo, o super novo, e o mais que super novo às categorias centrais de todas as nossas discussões. Contudo, na vida social como na Ciência, a tradição permanece.
Utilizamos comumente a palavra tradição para muitas coisas. Porém, o seu sentido mais amplo é simplesmente o de traditum (SHILS, 2006). Tradição, no sentido de traditum, se refere a qualquer coisa que seja transmitida ou legada como herança do passado ao presente, sob quaisquer formas: material ou simbólica, oral ou escrita. Nesse caso, o critério decisivo é que, não importa como, "foi criada pela ação humana, pelo pensamento e pela imaginação, e foi legada de uma geração para outra" (Idem, ibidem, p. 12)17 . Dizer que foi criada pela ação humana não significa dizer que o foi de maneira proposital, mas sim que se consolidou como um elemento da cultura. E mesmo que uma ação humana fosse planejada como forma de gerar uma tradição, não haveria garantias de que tal fato se concretizasse.
No sentido de traditum, a tradição é uma necessidade social e se faz sentir de forma evidente, sem muito questionamento. A tradição "É o passado no presente, mas é tão mais parte do presente quanto qualquer inovação recente [...] é algo que foi criado, desenvolvido ou acreditado no passado" (SHILS, 2006, p. 13)18.
A tradição, contudo não é vivida no presente como o era no passado. A tradição é continuamente modificada. Embora o seu cerne continue praticamente o mesmo, à tradição são somados diferentes significados e novas práticas podem se constituir em torno delas. Um dos traços mais marcantes no terreno do simbólico, a tradição se reveste de novas possibilidades e é sucessivamente recriada, não é apenas algo dado, ou puramente irracional, como defendido por alguns teóricos racionalistas, como Edmund Burke (Cf. POPPER, 2002, p.162). A tradição, além de importante repositório do passado, é um ponto de partida para novas crenças e novas ações humanas. Apesar disso, assim como a língua, a tradição só pode ser transformada pelo coletivo, carregando consigo um senso de integração, identidade e filiação dos membros de uma comunidade ou sociedade. A tradição, em sua persistência, gera o sentimento de continuidade e de pertencimento, e armazena, em si, o conhecimento primitivo da vida comunitária.
Mas, porque falar de tradição de forma genérica, se nosso objetivo é falar de tradição na Ciência? Porque, como nos mostra Karl Popper (2002), a Ciência segue uma tradição de segunda ordem, mas cujas características são indiferenciáveis, na maioria das vezes, das tradições sociais comuns, a saber: a ligação com o passado, a própria construção da tradição, a sua contínua recriação, a sua transformação pelo coletivo, a função de integrar e dar identidade a uma comunidade, o sentimento de pertencer e continuar o que já foi feito.
Porém, assim como as Ciências Naturais e as Ciências Sociais aferem de maneira diferente a importância dos seus clássicos, a percepção da Ciência de sua tradição também se constrói a partir de outras instâncias, exatamente o que leva Popper a falar de uma tradição de segunda ordem. Em Tradition (2006), Shils já observa que "[...] o esforço científico destina-se a conseguir algo novo; a crença tradicional está contente com o que se acreditava antes" (p. 104)19 . Essa diferença repousa, sobretudo, no fato de que a Ciência é igualmente herdeira de uma outra tradição, instituída na Antiguidade Clássica: a do conhecimento crítico.
Há, sinteticamente, duas formas possíveis de se lidar com a tradição: de forma acrítica, muitas vezes sem sequer sabermos que estamos diante de uma tradição, repetindo-a passivamente, sem nos darmos conta do que ela representa. Fazemos isso todos os dias e, em se tratando da vida cotidiana, não há, aí, necessariamente, algum mal. A outra forma possível é a atitude crítica, que pode resultar em rejeição ou aceitação da tradição, de uma maneira refletida e criteriosa. É esse o posicionamento que se acredita ser o ideal na Ciência, que deve elaborar o seu discurso não apenas herdando uma tradição sem questioná-la, mas refletindo e acrescentando a ela novos direcionamentos. É nesse exercício que o novo na Ciência aparece, e não na rejeição ao passado. Como afirma Shils (2006),
O processo de sucessivas substituições não se trata de criar um sistema auto-suficiente que nega o seu antecessor, nem de um corpo de fatos definitivos por um outro corpo de fatos definitivos. É um processo dialético de afirmação e negação, de aceitação e revisão (p. 140)20
Reclamar, assim, o lugar dos clássicos e da tradição num determinado saber, no nosso caso o Saber Comunicacional, não é aprisionar-se em um castelo de ilusões que só existe no passado, nem se trata de um esforço vazio de apologia acrítica aos autores pioneiros e às sendas deixadas por eles - que nós chamamos tradição. Trata-se, outrossim, de entender, de fato, qual é o papel representado por esses elementos na constituição de um campo de conhecimento. Esse papel é o do ponto de partida. E muitas vezes evita pontos de chegada vexatórios, pois desconhecer os clássicos e a tradição representa também correr o risco de afirmar como novo algo que já foi dito e repensado há muito tempo, implicando num esforço vão.  É Popper quem nos diz, "Se você não tem nada para alterar ou modificar, pode ser que você nunca chegue a lugar nenhum" (2003, p. 174) 21 . Ou, o que é pior: pode ser que você nunca consiga saber, na verdade, em que lugar, em que campo você está.
E o que os clássicos e a tradição do campo Comunicacional têm a dizer sobre o lugar em que nós estamos?

Considerações finais: sobre clássicos, tradição e o Campo Comunicacional

De alguma forma, as noções de clássicos e tradição permeiam nossos discursos. A primeira pouquíssimo aparece na literatura da área de Comunicação, mas se manifesta de uma maneira recorrente quando fazemos a costumeira distinção entre teorias da Comunicação clássicas e teorias contemporâneas, tão cara a disciplina Teorias da Comunicação.  Não seria errôneo afirmar que internalizamos os primeiros de modo empírico, mas carente de reflexão. Já o termo tradição se encontra mais assentado, inclusive, na literatura da área, e falamos livremente de tradição estadunidense, Escola de Frankfurt, estudos de recepção etc. Não obstante, ao tecermos nossas considerações acerca das contribuições que as noções de clássicos e tradição têm a oferecer a reflexão epistemológica da Comunicação, é forçoso afirmar que, ao fazermos isto, o fazemos porque, em ambos os casos, tal reflexão, até mesmo no que diz respeito, simplesmente, a delimitação dos termos, se encontra, muitas vezes ou ausente ou realizada apenas de maneira ilustrativa22. A falta de ponderação epistemológica sobre o que representam os clássicos e a tradição no Saber Comunicacional, e mesmo na Ciência, grosso modo, faz com que partamos de uma visão pouco científica, no caso do primeiro, e conjeturemos aleatoriamente os autores dignos de tal título; e, no caso da segunda, a apresentemos como verbete de enciclopédia. Mais que isso, faz com que fiquemos perdidos na nuvem das atualidades, ignorando a história de nosso próprio campo.
Certa feita, ao ser perguntado por um aluno qual o melhor caminho a ser seguido nos estudos, Durkheim respondeu: "`Se quiser amadurecer o pensamento, dedique-se ao estudo escrupuloso de um grande mestre, desmonte um sistema em suas engrenagens mais secretas. Foi o que fiz e meu educador foi Renouvier"' (COHN, 2005, p. 56).
A resposta de Durkheim colocou rapidamente o aluno no âmbito daquilo que ele, provavelmente, considerava essencial no conhecimento cientifico: os clássicos ("um grande mestre") e a tradição ("desmonte um sistema em suas engrenagens mais secretas"). Como nos inserirmos num campo do conhecimento sem distinguir seus clássicos e suas tradições? E como falar em clássicos e tradições desconhecendo sua natureza? Esses são dois problemas a serem superados pela aproximação, mais do que necessária, numa primeira etapa, da essência dos dois termos na Ciência. Os clássicos abrem as portas da tradição e nos convidam a explorar o campo ao qual estamos filiados de uma maneira mais profunda e providenciam as bases para a eventual inovação, evitando o bem descrito quadro segundo o qual
[...] Como as novas teorias continuam a se diversificar, se espalhando e amadurecendo, o risco é que as velhas teorias se reduzam a slogans, canalizadas em "escolas", ou entrincheiradas em `paradigmas', inibindo, assim, a aventura da inovação conceitual, que deve ser inspirada pelo retorno aos clássicos, a reflexão sobre os fundadores, e desfamiliarização dos cânones (BAHER, 2006, p. 11)23

Referências

, Jeffrey. "The centrality of the classics". In Social Theory Today. GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.). California: Stanford University Press, 1993.
BAEHR, Peter. Founders, classics, canons. Nova Jersey: Transaction Publishers, 2002.
CAMIC, Charles. Reclaiming the Sociological Classics: The State of the Scholarship. Boston: Blackwell Publishing, 1997.
COHN, Gabriel. Para ler os clássicos. São Paulo: Azougue, 2006.
"Of what use are the `classics'?". In Social Theory Today. GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.). California: Stanford University Press, 1993.
GELLIUS, Aullus. Attic Nights. Roman texts.
http://Penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Gellius/19.html.
Acessado em  10/02/2009.
KEMPLE, Thomas M. "Founders, classics, canons in the formation of social theory" in: DELANTY, Gerard. Handbook of Contemporary European Social Theory. Nova Iorque:Routledge, 2006.
, Robert King. On the shoulder of giants.Chicago: University of Chicago Press, 1993.
. "The uses and abuses of  classical theory". In On social structure and science. , Robert King; , Piotr. Chicago: University of Chicago Press, 1996.
POPPER, Karl. "Towards a rational theory of tradition". In Conjectures and refutations. POPPER, Karl. Nova Iorque: Routledge, 2002.
SHILS, Edward. "The trend of Sociology". In The Calling of Sociology and Other Essays on the Pursuit of Learning. SHILLS, Edward. Chicago: University of Chicago Press, 1980.
__________. Tradition. Chicago: University of Chicago Press, 2006.

Footnotes:

1Rafiza Varão é formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Maranhão (1999), possui mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília (2002), e é doutoranda em Comunicação também pela Universidade de Brasília. Atualmente é professora da Universidade Católica de Brasília e professora da Faculdade de Ciências Sociais e Tecnológicas do DF. E-mail: rafiza@gmail.com.
2A reflexão produzida pela Sociologia será, portanto, ao longo deste artigo, a principal condutora de nossa defesa dos clássicos.
3No original: "is not to be assimilated, surpassed, and rendered out-of-date as in natural sciences, but to be elaborated, adapted, put into a new idiom, applied to a new situation". Tradução nossa.
4Alguém pode afirmar que os casos de Durkheim, Marx e Weber são completamente distintos da quadríade, afinal, os quatros fundadores de Berelson eram advindos de outras áreas do saber que não a Comunicação. Contudo, será que podemos afirmar que Durkheim, Marx e Weber eram sociólogos conforme aplicamos o termo hoje? A competente avaliação de Peter Baher (2002) nos mostra que, provavelmente, não.  
5Journal of Communication; Public Opinion Quarterly; International Journal of Public Opinion Research; Communication Research; Human Communication Research; Media, Culture and Society; Communication Theory; Canadian Journal of Communication; Communication Education; Communication Monographs; Mass Communication & Society; Review of Communication; The European Journal of Communication Research; e Critical Studies in Mass Communication.
6No original: "[...] a man will never become a philosopher by worrying forever about the writings of other men". Tradução nossa.
7No original: "[...] each of us knows that what he has accomplished will be antiquated in ten, twenty, fifty years". Tradução nossa.
8Não nos parece, exatamente, que Galileu e Weber estivessem pregando uma rejeição aos clássicos. Apenas, no caso de Galileu, o desenvolvimento de uma autonomia, e no caso de Weber, um ciclo normal no desenvolvimento do conhecimento científico. É curioso notar que Merton apela a dois grandes clássicos para para expor sua preocupação ao que ele identifica como uso abusivo da teoria clássica.
9No original:
10Tradução nossa.
11Crítico literário, e ele próprio um escritor, Saint-Beauve para por aí no que diz respeito aos usos da palavra clássico na Ciência.
12No original: "[...] Science seemed to be inimical to tradition; tradition was held to be inimical to science". Tradução nossa.
13A célebre frase de Newton, escrita por ele numa carta a Robert Hooke em 1676, utiliza o aforismo para defender o conhecimento passado e se posiciona, justamente, contra a hostilidade.
14No original: "[...] concrete example of succesfull work". Tradução nossa.
15No original: "focuses the processes of reasoning rather than the results of immediate experience". Tradução nossa.  
16No original: Classics are earlier works of human exploration which are given a privileged status vis-à-vis contemporary explorations in the same field. The concept of privileged status means that contemporary practitioners of the discipline in question believe that they can learn as much about their field through understanding this earlier work as they can from the work of their own contemporaries [... ] as a classic, such work establishes fundamental criteria of a particular field". Tradução nossa.
17No original: "have been created through human actions, through thought and imagination, it is handed down from one generation to the next". Tradução nossa.
18No original: "It is the past in the present but is much part of the present as any very recent inovation [... ] It is something which was created, was performed or believed in the past, or which was believed to have existed or to have been performed or believed in the past". Tradução nossa.
19No original: "[... ] Scientific effort is intended to achieve something new; traditional belief is content with what was believed before". Tradução nossa.
20No original: "The process of successive replacement is not the replacement of one self-sufficient system which negates its predecessor; nor of one body of definitively reported facts by another body of definitively reported facts. It is a dialectical process of affirmation and denial, of acceptation and revision". Tradução nossa.
21No original: "If you have nothing to alter or to change, you can never get anywhere".
22Com certeza, existem as exceções. Apenas não nos ocuparemos delas aqui.
23No original: "[... ] As new theories continue to diversify, spread and mature, the risk is that the older ones will be striped-mined into slogans, channeled into `schools' or entrenched into `paradigms', thereby inhibiting the adventure of conceptual innovation that may be inspired by returning to the classics, rethinking the founders, and defamiliarization the `canon"'. Tradução nossa.